quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Menos de dois reais

Desespero. Pequeno, preto, em osso, cabeça numa direção, olho na outra, peito apressado, convulsivo. Desespero desaguou em mim, minhas mãos e conjecturas nos bolsos, depois de cinco palavras. O desespero e o medo dela não agüentaram cinco palavras. Como vou pro Campo Santo? Vai de ônibus? Olho baixa, não tenho. Graça – Campo Santo, não articulo pensamento, vou colocar a senhora num ônibus, vou pro ponto errado. Se acalme, se acalme, minha voz tinha que sair firme e segura. Mas eu tremendo. Pés dela todo partido, andou o dia todo, eram quase dez da noite. Meu filho sem comer. Chorando sem compasso. Pedi informação à moça, fugiu – como se eu fosse um bicho – a voz dela apertada, ela sem entender, eu confusa. A senhora conhece Salvador, ela pergunta. Sim, reticente. Além do SAMU, da polícia, do Corpo de Bombeiros, que, que, quem pode fazer o transporte do meu filho? Meu estômago. Vou ligar pra minha prima. Primo? Não pode levar de ônibus? Motorista não deixou, poblema renal, nasceu com isso, Roberto Santos, tenho que ir pra Laaapa e da Lapa pegar o Carbula. Ai meu Deus, ponto errado, vamos pro outro. Mão no queixo, meu filho sem comer desde ontem. Desde ontem! Passar por uma dessa em Salvador, meu filho sem comer e eu sem ter o que dá. Voz baixa, espremida. Tapa na minha cara, corte na minha cara, pobreza não é documentário. Quanto tempo em Salvador, tá na casa de quem? Minha cooperativa me ajuda, balança a cabeça negativamente. Seis semanas, vou embora semana que vem, eu to numa casa duma... Quem não tem nada faz o que em Salvador?, catei lata ontem, fiquei com noventa centavos, aí dei um kisuco com... pra ele, depois me disseram que não podia dar... Merda!, ela deu Kisuko, ele doente dos rins, merda merda merda... e eu? Eu nada. Merda merda merda. Seu ônibus, chegando no Campo Santo sabe ir pra casa? Seei, chegando no cemitero... Ônibus pára, pego o dinheiro no bolso, vergonha, tinha nem quatro reais, dois era pro ônibus ... ... ... Dou as moedas, menos de dois reais, e isso foi horrível... A porta fecha, viro pra minha casa, na mesma hora o céu dá uma pancada nas minhas costas, atravessa o peito, cai no chão, minha cabeça baixa. Menos de dois reais. Menos de dois reais. Não usei o SmartCard, merda. Trazer em casa, dar alguma coisa, depois ir pro ponto... Merda.

Tudo o que eu tenho é fútil.

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