domingo, 5 de setembro de 2010

Literatura e cidade - Gógol e Choay

“Veja o exemplo das cidades: são mais belas e melhores as cidades que nasceram e cresceram por si mesmas, onde cada um construiu segundo o seu próprio gosto e necessidade. Mas aquelas que foram construídas a régua e compasso não passam de casernas e mais casernas...”

A citação acima é um trecho do livro inconcluso Almas Mortas, de Nikolai Gógol, publicado em 1842. Fiquei muito tentada em apenas dizer que Gógol antecipou em mais de 120 anos a dicotomia urbanística (progressismo x culturalismo) explicada por Françoise Choay em “O Urbanismo: Utopias e Realidades. Uma Antologia”. E só complementar dizendo que ele estaria concordando com a corrente culturalista de Camilo Sitte.

Massss... Tenho que ser franca. O trecho completo da fala do personagem é o seguinte:

"E o senhor é apreciador de panoramas? – perguntou Constangioglio, fitando-o com súbita severidade. – Veja lá, se começa a correr atrás de paisagens, ficará sem pão e sem paisagem. Olhe para o proveito, não para a beleza. A beleza virá por si mesma. Veja o exemplo das cidades: são mais belas e melhores as cidades que nasceram e cresceram por si mesmas, onde cada um construiu segundo o seu próprio gosto e necessidade. Mas aquelas que foram construídas a régua e compasso não passam de casernas e mais casernas... Deixe de lado a beleza e pense mais nas necessidades...”

Aí, mesmo não gostando de “régua e compasso”, ele estaria concordando mais com o funcionalismo progressista de Le Corbusier, né não?

3 comentários:

Unknown disse...

Sanane, minha querida: você caiu na PEGADINHA DA CHOAY. Essa dicotomia que ela inventou NON ECSESTE. Nenhum dos autores que ela cita se encaixa no esqueminha dela. Alguns são OPOSTOS, como Sitte e Unwin.

Quem lhe disse que Camillo Sitte defende cidades medievais? Ele fala das cidades greco-romanas, medievais latinas, medievais góticas e barrocas. A maioria dos seus exemplos NÃO SÃO medievais, e vão longe da estética do pitoresco... Os projetos que ele faz são mais “barrocos” que medievais. Leia o sujeito e verás. Quem repete essa cantilena é porque leu Choay, mas não Sitte.

A idéia de que a expressão do útil é bela por si só, porque atende ao útil NÃO É do Corbusa. Você não vai ver isso em nenhum texto dele – que eu me lembre. Isso é outro mito, que Choay repete. Ele defende que leis matemáticas geram a beleza (uma beleza platônica) e que as construções utilitárias dos engenheiros, por seguirem essa matemática, embora sem nenhuma intuição artística, tangenciavam essa beleza. Ele adora construções como sólidos geométricos. Por isso que seriam as melhores da época, por uma questão de princípio compositivo. Basta ler suas obras.

Por outro lado, era uma idéia já vigente no séc. XX a de que o mínimo necessário, portanto, seria uma lei geradora da beleza. Por outro lado, tinha uns americanos no séc. XIX falando isso – um deles era um tal de Horatio Greenough – e Mumford desenvolve um pouco isso num livro chamado Técnica e Civilização (sem tradução em português). Ele e Giedion, por exemplo, citam o caso do machado “clipper” norte-americano, e as turbinas, entre outras coisas.

Vai por mim: não leve a Choay a sério.

(Mas, boa lembrança do Gogol... faz tempo que li Almas Mortas, antes do meu tempo de arquiteto...)

Unknown disse...

Ah, corrigindo: em vez de medievais góticas, medievais NÓRDICAS.

Sanane disse...

Daniel, meu querido... assim.... acho que você procurou achar o que você queria ver, não? Vê, no texto eu não falei se Choay tava certa ou errada, se concordava ou não com ela. O foco do texto não é esse. O que eu achei interessante dizer foram duas coisas. Uma é o poder que você tem em direcionar o texto de um autor a partir do corte que você faz. Outra é aproximar dois autores tão distantes no tempo e na proposta de trabalho. Quando li esta passagem do livro de Gogol, foi inevitável lembrar de Choay, independente dela estar certa ou não.

Bom...

Sim, ninguém se encaixa em dicotomias, isso é coisa que não se discute mais...

Ninguém me disse que Sitte defende cidades medievais. Eu também não disse. Bem, eu acho que não disse. Eu comparei o corte do texto que eu fiz (que ficou tendencioso) com o que disse Choay. Eu poderia deixar isso mais claro no texto dizendo: “ele estaria concordando com a corrente culturalista proposta por Choay, e que, segundo ela, é representada principalmente por Camilo Sitte”. Mas isso em absoluto não me ocorreu, e, de qualquer modo, isso não é um texto acadêmico e, neste blog, me dou a liberdades.

Coisa semelhante pode ser dita em relação a Corbusier.
Porque você queria tanto ver o mar ser amarelo que, de fato, acabou vendo?

E, relaxe.... Como disse, neste blog eu escrevo de maneira bastante livre, mais com coisas que tenho acumulado do que com pesquisa. Então, pelo menos da maneira como penso hoje, não haverá textos muito estritos.